UM OLHAR PARA ALÉM DO SINTOMA: RESGATANDO HISTÓRIAS

O filme indiano “como estrelas na terra – toda a criança é especial“, disponível no netflix, trata sobre Ishaan Awasthi, um menino de 9 anos que não sabe ler nem escrever e é incompreendido pelo sistema educacional e familiar. O medo da punição, de ser xingado pela família por sua dificuldade de aprendizagem, faz com que Ishaan adote condutas de tentar esconder da família as suas dificuldades e se esquivar dos colegas e professores, como evitar que os pais descubram as notas baixas dando o sua prova para os cachorros destruírem e faltando a aula para passear pela cidade fazendo o que gosta, apreciando as paisagens e adentrando o mundo da imaginação.

Ishaam tem um dom, pintura e desenho, porém esse dom não é reconhecido pelo entorno, que é hostil e cruel com pessoas como ele que não se adaptam aos padrões pré-estabelecidos. Ishaam não tem a experiência de ser reconhecido pelos seus sucessos, apenas por suas falhas. A família vive na correria do dia-a-dia, a mãe tenta ajudar, porém sobrecarregada pelas tarefas domésticas e por dividir a atenção com o filho mais velho, Yoham, um exemplo de estudo e bom comportamento, não consegue enxergar as necessidades do filho menor. O pai, por outro lado, é ausente na maior parte do tempo, absorvido pelas exigências do trabalho. Nos momentos que encontra Ishaam, o recrimina com gritos e agressividade, dando tapas no rosto de Ishaam e o chamando o filho de “retardado e anormal”.

A professora, em conjunto com a diretora, ambas descrentes da capacidade de desenvolvimento de Ishaam, convocam um uma reunião com os pais para ressaltar todas as dificuldades do menino, que nem parece “irmão de Yoham“. A professora explica que Ishaan não apresentou progresso, apesar de ter repetido uma vez o terceiro ano, e que permaneceu “sem melhoras no dever de casa e no trabalho,como se os livros e as letras fossem inimigos e ler e escrever um castigo“. Além disso, considera os erros de Ishaam como propositais. Sem conseguir enxergar maneiras de auxiliar o menino, indicam para os pais a transferência para uma escola especial, com o argumento de que “algumas crianças tem menos sorte”.

O pai do Ishaam, muito decepcionado com o filho, conversa com um amigo para transferi-lo para um colégio interno, uma escola que tem como principal regra a ”disciplina” e acostumada a domesticar ”cavalos selvagens”. Mesmo com muita relutância em ir, considerando que mais uma vez está sendo punido sendo afastado da família por algo que não entende como melhorar, pois não importa o quanto tente é sempre visto como fracassado, os pais deixam Ishaam no novo colégio. Antes de ir, porém, Ishaam deixa uma história em formato de desenho onde gradativamente um casal com dois filhos abandona o menor.

Afastado do convívio familiar e sendo incompreendido por todos a sua volta por ser diferente do que a sociedade espera dele, Ishaam vai perdendo o seu brilho, se isolando cada vez mais, deixando de pintar e não dando importância para a visita dos pais e do irmão, como se assim, pudesse desaparecer.

Até que entra na escola um professor substituto, Ram Shankar, com uma metodologia totalmente diferente, acreditando “que cada criança tem seus próprios talentos, habilidades e sonhos” e, ao olhar para o menino, totalmente desconectado do mundo ao redor, Ram Shankar se interessa em descobrir o que impede Ishaam de se abrir, identificando que ”olhos do menino pedem por ajuda’‘. O professor busca resgatar a história de Ishaam, olhando os cadernos e indo até a casa da família conhecer os pais e mais dados sobre o garoto. Na casa enxerga grandes potencialidades no aluno, apesar da fala do pai que explica o quanto o filho é insubordinado e com dificuldades de aprender. Ram demonstra aos pais que “eles só conseguem enxergar os sintomas, mas não o problema” e que a desobediência de Ishaam é uma forma do menino esconder as dificuldades dizendo “não quero” ao invés de “não posso”. O professor mostra os padrões dos erros de Ishaam e explica que o problema tem um nome “dislexia“, uma dificuldade de aprendizagem, que, segundo o DSM-5, caracteriza-se por um ”problemas no reconhecimento preciso ou fluente de palavras, problemas de decodificação e dificuldades de ortografia’‘ (p. 67).

Ao se identificar com Ishaam e demonstrar que ele não está sozinho, o professor resgata a vida e os sonhos do menino, o auxiliando a lidar com os obstáculos e libertando as outras habilidades dentro dele.

Toda essa história me fez pensar o quanto a sociedade que vivemos, com multitarefas e competitiva, faz com que pouco observemos a diversidade e a sutileza das pequenas coisas. O que Ishaam demonstra no filme é que quer ter liberdade para ser como é, único, mas as pessoas estão imersas demais no seu mundo já estipulado para ter tempo de analisar a singularidade do outro, é melhor para a sociedade encontrar apenas o comum. O que não conhecemos dá medo. Pois o que vamos fazer sem planejamento? Sem saber o que nos espera? É melhor deixar as diferenças de lado e atentar para o que é comum. Mas ao mesmo tempo, são as diferenças que nos constituem como especiais, caso contrário corremos o risco de nos perder de alguém mais importante: nós mesmos. Mas ao mesmo tempo precisamos do outro, precisamos estar perto e de uma validação. ”Você é capaz”, ‘Estou olhando para ti”, ”vamos ver juntos essas dificuldades”. A maior lição do professor é demonstrar que se importa com Ishaam, que o entende, que fará o possível para auxiliá-lo e que acredita que ele será capaz de superar as dificuldades. Ram, ao invés de tentar encaixá-lo, busca utilizar a criatividade de Ishaam para estimulá-lo, olhando para a sua integralidade, coisa que até o momento ninguém havia feito por ele.

Desta forma, com essa conduta Ram coloca em prática o conceito de equidade, que é diferente de igualdade, pois apesar de todos terem garantido os seus direitos de forma igualitária, sem discriminação, as pessoas são diferentes e tem necessidades diferentes que precisam ser olhadas, respeitadas e tratadas da forma devida.

Escrito por: Thais de Souza Sottili – Psicóloga – CRP 07/23212

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